Bixórdia

 

O "Lampião da Esquina" foi o primeiro jornal alternativo gay do Brasil. Fundada em 1978, a publicação - que circulou durante três anos - teve o autor de novelas e jornalista Aguinaldo Silva e o escritor João Silvério Trevisan, entre outros comunicadores homossexuais, como os principais formadores de opinião. A coluna BIXÓRDIA apareceu na edição número 05 do jornal.

 

Embora fosse um periódico direcionados ao público LGBT, dá para dizer que era um jornal muito MACHO! Por isso consideramos importante reviver um pouquinho do "Lampião". Porque faz parte da nossa história! No vídeo abaixo, Aguinaldo Silva conta algumas curiosidades da época em que o jornal foi criado. Em seguida, viaje no tempo e relembre (ou conheça) a BIXÓRDIA na íntegra.

A primeira BIXÓRDIA

 

O QUE VEM A SER BIXÓRDIA?

Está no dicionário de Mestra Mambaba: BIXÓRDIA, s.f; em machés, palavra originária de bicha, s. i. (substantivo indefinido), somada a mixórdia, s.f mistura, bagunça. Representação do que é livre, autopermitido. Tudo é sério, nada é traste. Paradoxo i'iwi (finíssimo, adorei) em que se misturam viados, bichas, perobos, tias, sobrinhas, primas, entendidos, gueis, transadores, mariconas, paneleiros, frescos, frutas e xibungos. Por ext.: Vale tudo,né queridinhas?

Meia-noite, a boate Fervendo. Enquanto rola o show de travestis, um espectador não pára de falar. Loura, linda, coberta de plumas e brilhos, a estrela do show não se contém e qualifica, no microfone, o destempero verbal da platéia: "Hoje cliente,amanhã concorrente"

Outro dia, um amigo nosso foi ao cinema, para curtir filme messssmo. Procurou um lugar bem distante de qualquer badalação, quer dizer, tentação. Mas lá pela metade do filme, sentiu uma perna boba muito de leve na sua. Olhou para o lado e não acreditou: era uma mulher, senhora de aparência respeitabilíssima. Não teve dúvidas e disse baixinho: "Desculpe, minha senhora, mas eu sou bicha". Passaram-se alguns momentos até que a santa senhora compreendesse que, da fruta que ela gostava, o nosso amigo comia até o caroço. Moral da história: conversando a gente se entende.

 

CENA DO COTIDIANO

Uma da tarde de quinta-feira da semana passada. Rua do Caicte (antigamente, hoje uma ruína do Metrô), no Rio. Francisco Bitencourt, um dos editores de LAMPIÃO,

atravessa uma das pontes sobre as obras. Sacolinha do Bob's na mão, vai almoçar. De repente, nota que o silêncio se fez, lá embaixo. Olha e vê todos os operários que, imóveis, acompanham a sua passagem. Aflito, procura não tropeçar, enquanto sente o peso de todos aqueles olhares. E já está quase no final da passarela quando ouve, vindo lá de baixo, o apelo de um dos operários: "Ô, boneca! Nós também queremos almoçar."

MAMBABA I

Alguns dos leitores do LAMPIÃO acham que a Rafuela Mambaba - como se sabe, figura de natureza controvertida: ignorante, beberrona, falaz - devia se chamar

Mão-boba, porque só escreve bobagens. No número 4 do jornal - segundo um destes leitores - ela "chegou ao nadir de sua sabedoria, ao confundir Nero com César e ao

dizer que Proust e Wilde se travestiam, o que é absolutamente inverídico". Comentário da Mambaba: "Nadir? Cruzes! Era o nome de uma vizinha minha que

falava grosso, cuspia pro lado e raspava o bigode."

 

MAMBABA (OU A VERDADE HISTÓRICA) II

O leitor (em que pese a ignorância desavergonhada da Mambaba) tem toda a razão. A verdade sobre Marcel Proust é que ele foi um terrível enrustido, que se

enclausurou no fim da vida, só se deixando ver pela governanta. Mas isso não impediu que legasse ao seu amor - um árabe da África do Norte - um hotelzinho em

Paris, que o bofe passou a explorar como ninho de amor para homossexuais. Quem conta isso é Gore Vidal, assíduo freqüentador do lugar logo depois da II
Guerra Mundial.

Noite dessas Antônio Chrysóstomo degustava biritas no Super-Bar da Cinelândia com dois bofes. Aproxima-se um seu conterrâneo, próspero comerciante de arte na praça carioca. "Você está bebendo de arrependimento, por causa do LAMPIÃO?" Chrysóstomo: "Não. Estou bebendo de desgosto, por ter um amigo como você".

Esta foi coletada pelo Celsinho Couri, numa boate da paulicéia. Um mulatão dos baita, vestido de forma a dar inveja no Ney Matogrosso, borboleteava seu charme

quando percebeu que estava sendo descaradamente seguido por uma bichinha. Bem bichinha. Daquelas que arrumam a golo do paletó das pessoas e, na Intimidade,

chamam o caso de maridinho. A figura circulava na pista e a bichinha atrás. Ia ao banheiro e a bichinha atrás. Voltava ao hall, e a bichinha atrás.

Até que o mulatão. com voz bem melada, estancou a perseguidora e declarou: "Olha aqui meu amorrrrr. S'eu gostasse de cauda, não dava a minha".

 

CONCURSO DA BIXÓRDIA: Muita gente ainda tem medo das palavras, de ser chamada de bicha, por exemplo. Pois bem: para provar que o que conta é a cuca das pessoas e que a palavra, seja qual for, pode - e deve ser encarada como coisa gozosa (!), curtível até, Bixórdia lança um concurso: qual o coletivo da palavra bicha? Já

pensaram? Manada, rebanho ou vara não servem, pois já designam o coletivo de outras espécies. Então, imaginações à obra. Vamos inventar um coletivo de bicha,

enriquecendo e resgatando o vocabulário gay!

 

Eles eram inimigos íntimos e moravam no mesmo prédio. Quando um subia no elevador, o outro disfarçava e aguardava a próxima viagem. Certo dia, um deles veio acompanhado de um peg-pag: alto, louro, coxas grossas e cachê médio. Tomaram tranqüilamente o elevador. A porta estava quase fechada quando alguém apertou o botão do lado de fora. Era o outro. Vendo o companheiro do Inimigo intimo, audaciosamente cumprimentou: - "Boa noite". O contratado mais do que depressa respondeu: -"Boa noite". Para não ficar por baixo, o dono do material, finalmente, apresentou: - "Boa noite. Conhece o meu sobrinho?" A maldição falou mais alto e o inimigo respondeu: "Claro. Ele foi meu sobrinho na semana passada."

 

Este mês, no Rio, malgrado a velha lenda de que bicha - por ser encantada - não morre, desaparece, faleceu um dos mitos da bixórdia carioca: Hugo de Freitas, a Nêga Huga que reinou, soberana, ao tempo áureo (1945-1955) dos Bailes de Gala do Teatro João Caetano. Ao lado de J. Luís, Trágica, Tzarina. Nêga Erasma, das Irmãs Navarro, Pivete, Miss Itália, Maria da Rocha. Princesa Fátima, Marocas (esta, também já embarcada; que repousa na paz e na glória merecidas), da paulista Miss América e Escrachilda (onde estará? Era de Juiz de Fora). Nêga Huga brilhou na passarela do João Caetano fazendo a linha menina-moça chic, na qual, asseguram seus contemporâneos, era impecável. Mas não foi só se auto-travestindo que a falecida marcou sua passagem pelas calçadas da vida: em 1963, produziu e dirigiu um espetáculo histórico, Les Girls, o primeiro, no Brasil. a apresentar travestis numa moldura técnica e artística de fato profissionalizante - inclusive lançando, em grande estilo, a futura estrela Rogéria. Por tudo, Hugo (a) de Freitas teve a morte merecida: aos 55 anos, em plena ação, quando batalhava o remonte de Les Girls. O comentário de sua amiga Doralice, ao saber de seu passamento, parece adequado: Foi dormir; quando acordou, estava morta!" Sumiço perfeito: sem doenças, choros e ranger de dentes. Quem sabe, com Hugo. Marocas e os seus companheiros da Era do Ouro da Bixórdia não se cumpre outro velho ditado guei? Todas devem estar lembradas: aquele que diz que bicha, ao morrer, vira poeira dourada.

 

O nosso amigo Gide Guimarães escreveu uma carta para o LAMPIÃO fazendo um retrato sem retoque dos membros do conselho editorial. Acabou traçando a sua

própria caricatura ao associar, (inconscientemente) talvez, o nome de (André) Gide com o de Guimarães (Rosa) e revelando com o nome falso suas aspiraçães a grande

estilista. Perdeu-se tanto pelo estilo como pelas intenções. As bonecas do LAMPIÃO quando se auto-criticam não deixam pedra sobre pedra, sobrando paulada até para

quem está por perto. O Gide que se cuide. Ou então que abra o jogo. Está convidado a tomar um chá conosco.

 

Pensamento do Mês
NÃO CUSPA NO PRATO QUE TE COMEU (Dodô Darling)

 

* Restauração e digitalização feita pelo Centro de Documentação Prof. Dr. Luiz Mott.