Comportamento

Cartunista Laerte fala sobre vontade de se vestir de mulher

De salto médio, meias coloridas, maquiagem leve e namorada a tiracolo, Laerte Coutinho explica o que é o crossdressing, seu novo estilo de vida

 

   Foto: Carlos Cecconello/Folhapress

 

Esta semana, a Homos Brasil descobriu duas entrevistas feitas com o cartunista Laerte Coutinho e não poderia deixar de trazer a vocês. Ele fala sobre o crossdressing, uma espécie de travestimento que adotou. Já ouviram falar? A íntegra das matérias pode ser conferida nos sites da Folha Ilustrada e do Portal iG.

 

 

Folha - Diversas possibilidades para a mudança do seu estilo de vida passam pela cabeça. A primeira delas é que você pirou, um processo que teria começado em 2005, com a morte de seu filho num acidente de carro, passou pelas tiras da Ilustrada, cada vez mais estranhas, e agora isso. Você está louco, Laerte?

 

Laerte Coutinho - Eu não me sinto fora do eixo, fora do tom, fora de nada. Comecei a me aproximar do travestimento, ou "cross-dressing", em 2004. Interrompi --e a morte de meu filho tem um peso nisso-- e retomei em 2009. Fiz a minha primeira montagem em 2009. Mas as coisas que se evidenciaram [em meu trabalho] a partir de 2005 já estavam ali, latentes, germinando em 2004.
 
Folha - Uma segunda possibilidade é que você se veste porque isso dá tesão.

Laerte - Não, não é um fetiche sexual. Não é, nem é um tema que me interessa agora. O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura. "Ah, está vestido de mulher, então é viado." "Jogou bola, é macho." E eu que gostava de costurar e de jogar bola? O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você.
 
Folha - Mas você é bissexual, certo?
Laerte
- Sou.

 

Folha - E não há ligação entre isso e o "cross-dressing"?
Laerte
- Não.

 

Folha - Você está fazendo isso para espantar o tédio?
Laerte -
Não faço isso porque a vida está sem graça. O problema é a vida submetida a essa ditadura dos gêneros, a esses tabus que não podem ser quebrados. É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir, ao se manifestar, ao tratar as pessoas, seu modo, seu gestual, sua fala, tudo isso é cerceado e limitado por códigos muito fortes e muito restritos. Isso é uma coisa que me incomoda.
 
Folha - As pessoas aparentam normalidade e tentam não demonstrar um espanto, certo?
Laerte
- Por uma razão: se demonstram espanto, estão ferindo um código de boa conduta intelectual. Demonstram que não são modernos, por exemplo.
 
Folha - E na rua?
Laerte
- Quando eu estou na rua de saia e passa uma kombi e o cara faz "fiu-fiu" pra mim, ele não teve dificuldade nenhuma em fazer aquilo. E eu também recebo de forma muito clara.
 
Folha - Você dá pistas de que vai estar travestido quando vai encontrar uma pessoa que ainda não sabe?

Laerte - Existe uma tática, um modo de preparar um pouco. Vou na casa de uma pessoa que não conheço, não vou totalmente montado. Questão de bom senso.
 
Folha - Mas você pode ir de homem?
Laerte
- Estou abolindo esses negócios.

 

Folha - Você pode ir sem maquiagem?
Laerte -
Eu estou sem maquiagem. Ops, ah, não, estou com olho pintado! Mas posso, sim, ir sem maquiagem.
 
Folha - Como foi o Natal em família? Com vestido?
Laerte
- Não, não. Só unha mesmo. Não estava nem de bolsa. Acho que foi mais mãos mesmo. Rolou um certo estranhamento com o cabelo. Esse corte feminino, feito pela [minha namorada] Tuca.
 
Folha - Avisou de alguma forma para se prepararem?
Laerte
- Não, fui na louca.

 

Folha - Como você explica isso para as pessoas?
Laerte -
É como se a vida tivesse me levado a essa circunstância e, quando eu me vi, percebi que aquilo representava uma busca pra mim. Foi mais ou menos isso que senti. Quando vi, comecei a fazer tiras do Hugo virando a Muriel.
 
Folha - O lema do Brazilian Crossdresser Club, do qual você faz parte, é "existimos pelo prazer de ser mulher". Que prazer é esse, Laerte?

Laerte - Eu não concordo muito com esse lema, porque é uma frase que procura construir uma certa fantasia que eu não partilho. Eu não vou ser mulher nunca. Mas acho que é possível sair na rua e ser aceita como uma pessoa que se veste daquela maneira, que se enfeita e se produz e se apresenta daquela maneira.
 
iG - Você não cansa de ter de explicar ou mesmo justificar o estilo crossdresser?

Laerte - Não. Se as pessoas estão perguntando é porque alguma preocupação existe e eu acho que é legítima, por isso não tenho problema em responder o que me perguntarem.

 

iG - Tenho a impressão de que o crossdressing é mais desafiador diante da sociedade do que um homossexual ou um travesti - me parece que as pessoas têm uma enorme dificuldade de entendê-lo.

Laerte - Eu tenho essa impressão também. Não tenho certeza absoluta, mas também tenho essa impressão. Os homossexuais também acham estranho que um travesti não seja necessariamente homossexual. O crossdressing é uma designação completamente social, uma convenção de um preconceito.

 

iG - Talvez porque a população já assimilou que um travesti é um homem homossexual, muitas vezes se prostituindo.
Laerte
- O crossdresser é um travesti de classe média.

iG - Você acha que, por ser uma pessoa pública, outros crossdressers podem esperar um papel de porta-voz diante da mídia?

 

 

Laerte  - Nunca me falaram, não. Ultimamente eu tenho visto, porque faço parte de um clube de crossdressers, o Brazilian Crossdressers Club (BCC) - em inglês mesmo, quanto eu entrei já era assim (risos) -, que tem aparecido bastante coisa na imprensa. Talvez seja o momento dessa preocupação. No meu caso apareceu a entrevista da revista "Bravo", depois algumas outras, mas esse fluxo de busca de informação sobre crossdresser e travesti não é só comigo não.